Consultorias veem mais companhias com dificuldades financeiras em meio a juros altos e bancos restritivos após caso Americanas

Por Fernanda Guimarães e Mônica Scaramuzzo — De São Paulo

23/02/2023 05h01 Atualizado 23/02/2023


1 de 1 Bassi, da Virtus BR: Entre as empresas varejistas, gasto com serviço da dívida dobrou no ano passado em relação a 2021 — Foto: Fernando Martinho/Valor

Após a escalada da crise do dia 11 de janeiro, quando o caso da rede Americanas veio à tona, com um rombo contábil da ordem de R$ 20 bilhões, empresas especializadas em reestruturação viram a demanda por renegociações de dívidas e “turnaround” em companhias crescer nas últimas semanas. O cenário preocupa, embora ainda não se tenha identificado uma crise de crédito generalizada.

Levantamento da Virtus BR, feito a pedido do Valor, mostra que, entre este ano e o início de 2024, grupos de diversos setores devem renegociar ao menos R$ 260 bilhões em dívidas. O número pode chegar a R$ 700 bilhões em operações que precisam ser equacionadas, de acordo com a Starboard, gestora que compra ativos em crise, quando se pega um espectro maior de grupos em dificuldade.

O momento atual de reestruturação só não é mais grave que o da crise de 2015 e 2016. Naquela ocasião, a atividade econômica fraca e o colapso das grandes empreiteiras envolvidas na Operação Lava-Jato colocaram o Brasil na maior recessão de sua história e muitas empresas foram à lona. Quase R$ 500 bilhões em dívidas precisaram ser arroladas e diversos ativos tiveram de ser vendidos em meio às reestruturações.

Apesar dos números grandiosos, especialistas não veem a crise como algo generalizado

Com a alta dos juros e a inflação, nos últimos meses muitas companhias começaram a buscar soluções para seu endividamento, sobretudo de curto prazo, e estão sentindo que a torneira de crédito secou. Os bancos estão menos flexíveis nas mesas de negociações desde que o caso da Americanas ganhou escala.

Diferentemente do que acontece no crédito a pessoa física, que tem taxas são prefixadas, as operações com pessoa jurídica costumam ser atreladas ao CDI ou ao IPCA. Por isso, ficaram mais caras de 2021 para cá. Ao mesmo tempo, a perspectiva de corte da Selic tornou-se mais distante em meio a dúvidas sobre o tratamento da questão fiscal pelo novo governo.

Apenas nas primeiras semanas do ano, além do midiático caso da varejista, que renegocia uma dívida de mais de R$ 40 bilhões, a Oi caminha para um segundo pedido de recuperação judicial. Azul e Gol renegociam vencimentos, enquanto Light, Marisa e CVC, contrataram assessores financeiros para encabeçar tratativas com os credores. Esse conjunto de dívidas supera R$ 90 bilhões. No entanto, os números não param por aí e outras companhias já batem na porta de reestruturadores.

Apesar dos números grandiosos, especialistas não veem a crise como algo generalizado. Até agora são casos pontuais, muito deles de empresas que já apresentavam dificuldades. Além disso, o caso da Americanas, que não tem relação com a conjuntura econômica, ajuda a inflar o volume que precisará ser reestruturado. “Na nossa visão é um caso isolado, que não tem efeito de contágio. É um caso isolado de fraude” disse o presidente do Itaú Unibanco, Milton Maluhy Filho, em teleconferência recente, quando comentou os resultados anuais da instituição financeira.

No levantamento, a Virtus BR usou os casos públicos, mas também fez uma projeção com uma base de dados própria para detectar as empresas muito alavancadas – ou seja, aquelas que têm uma razão entre dívida líquida e Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) de pelo menos 3,5 vezes. Esse patamar é uma referência nos contratos de dívida e pode acionar os chamados “covenants” (gatilho que pode antecipar o vencimento de dívidas).

As contas da assessoria financeira também consideram uma gama de empresas de capital fechado. O número contempla, ainda, companhias cujo caixa é menor do que os vencimentos nos próximos 12 meses.

O número chama atenção e deixa em evidência um momento delicado para as companhias brasileiras, afirma o sócio da Virtus BR, Douglas Bassi. A situação, segundo ele, é agravada pela alta taxa de juros no país, que vem corroendo a geração de caixa das empresas. Um indicador preocupante, de acordo com o executivo, foi identificado já no ano passado entre as varejistas. Entre essas empresas, o gasto com o serviço da dívida dobrou em 2022 em relação ao ano anterior.

“Mas isso não tem ocorrido apenas com as empresas do varejo. Vemos até empresa de geração de energia, que teoricamente tem uma previsibilidade maior, com dificuldade diante do aumento do custo”, diz Bassi.

Com os bancos mais seletivos na hora do desembolso de crédito, situação agravada após a eclosão da crise da Americanas, a estratégia tem sido olhar para mecanismos alternativos de crédito na busca de soluções para organizar a vida financeira das empresas, conta. “O humor dos credores mudou.”

Na gestora Starboard, especializada em investimento em empresas endividadas, o retrato é ainda mais grave: o cálculo é que há cerca de R$ 700 bilhões em dívidas corporativas que precisarão passar por uma reestruturação.

O sócio da gestora, Warley Pimentel, diz que no fim de 2018 já havia identificado que uma série de companhias que teriam dificuldade de manter suas estruturas de dívida. Porém, a liquidez injetada no mercado ao longo da pandemia e o que o executivo chamou de “standstill artificial” para os vencimentos – com as prorrogações de prazos oferecidas pelos bancos – postergaram a necessidade das empresas de se debruçar sobre o problema. “Hoje, 60% das empresas listadas não geram caixa para os juros da dívida”, afirma.

Agora, dado o enorme volume de empréstimos que passará por renegociação, o executivo da Starboard avalia que apenas injeção de dinheiro novo nas empresas não resolverá o problema. Para ele, será necessária uma combinação entre conversão de dívida em ações, desconto no valor dos compromissos (chamado no mercado de “haircut”) e um alongamento real dos vencimentos.

“As empresas nos últimos anos se endividaram em um momento de juro mais baixo, apostaram no crescimento. Mas o que aconteceu foi o contrário do previsto, não houve crescimento do PIB e os juros subiram”, diz Pimentel.

Luiz Galeazzi, sócio da Galeazzi Associados, diz que há um grupo de boas companhias que precisam arrumar a casa e que já estão se antecipando à crise que se avizinha nos próximos meses. Nesse conjunto, também estão startups que receberam injeções de capital e que estão “colocando as barbas de molho” – os investidores voltados a esse perfil de negócios estão mais seletivos e há uma cobrança maior por resultados.

O grande problema é que muitas empresas em dificuldades, quando batem na porta das consultorias pedindo ajuda, chegam com a situação da empresa praticamente irreversível. “Já não temos como pegar o caso”, afirma Galeazzi. “Enfrentamos aqui um outro tipo de crise, que é a negação do empresário. Eles demoraram para pedir ajuda.”

A consultoria oferece dois tipos de prestação de serviços às empresas: “turnaround” (melhoria de performance) e gestão de crise para reestruturação dos negócios. De acordo com Galeazzi, várias empresas começaram a se dar conta das dificuldades no último trimestre do ano passado. “A cereja do bolo, contudo, foi o caso das Americanas. O que ficou muito em evidência nesse caso especificamente é a credibilidade.”

Um representante de grande escritório de advocacia afirma ao Valor que tem sentido um aumento na demanda para reestruturação e já foram consultados por uma série de agentes de mercado sobre o cenário em geral. A área jurídica também tem sido demandada e, segundo fontes, o telefone não tem parado de tocar.

Fonte: Valor Economico