Ataques ao BC e à meta mexem com expectativas de inflação e afastam início de cortes da Selic

Tensão com mercado marca 100 dias de governo Lula
B3: painel mostra desempenho do Ibovespa. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa cem dias de governo marcados por tensão com o mercado financeiro. A troca de farpas é antiga durante governos do PT, mas, depois da posse, o clima azedou quando o centro da discussão migrou do fim do teto de gastos para os ataques ao Banco Central (BC) e às metas de inflação.

E o que poderia ter sido apenas mais um bate-boca, desta vez, chegou ao mundo real, mostrando que os agentes tinham deixado de interpretar os comentários apenas como discurso de palanque. As expectativas de inflação para 2025 e 2026 subiram de algo em torno de 3% para cerca de 4% em apenas 60 dias, puxaram para cima a curva de juros futuros (as taxas de juros ao longo do tempo) e pavimentaram o caminho para o BC segurar a Selic  em 13,75% ao ano em março.

“Afinal, o que é retórica e o que é prática?”, questiona Sergio Goldenstein, estrategista-chefe da Warren Rena e ex-chefe do Departamento de Operações do Mercado Aberto do BC. “No primeiro momento parecia retórica, mas depois ficou uma situação repetitiva, com ministros e a ala moderada do governo fazendo coro com o presidente Lula. E foi um tiro no pé.”

Só que, ao contrário do que se esperava, a decisão de manutenção dos juros e o duro tom da ata da mais recente reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) – adotados para reforçar a credibilidade e a independência do BC – não funcionaram como balde de água fria. Na última quinta-feira, Lula voltou a disparar: “Se a meta está errada, muda-se a meta”, disse. “É humanamente inexplicável a taxa de juros de 13%, juro real de 8,5%. Não é possível a economia funcionar”, afirmou em café com jornalistas.

Investidores, gestores e analistas argumentam que alguns fatores em especial causam inquietação nessa artilharia contra os juros altos e as metas de inflação. O primeiro deles é que o governo tem poder decisório na fixação dos limites para o IPCA no Conselho Monetário Nacional (CMN), já que o grupo é formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC. Cada um tem direito a um voto e as decisões são por maioria simples. Atualmente a meta para 2023 é de 3,25%, com tolerância de 1,5 ponto para mais ou para menos. Para 2024 e 2025, é de 3%, com a mesma banda de flutuação.

Além disso, os mandatos de dois diretores do BC já terminaram, e o mercado aguarda as novas indicações para breve. Até o fim do ano, mais dois deixarão o cargo e, em 2024, outros três. O posto de presidente e os dos dois diretores remanescentes ficam vagos até dezembro de 2025. O ministro Fernando Haddad disse na semana passada que os dois primeiros nomes serão anunciados após o retorno da viagem à China e que são “absolutamente técnicos”.

“Preocupa a sinalização de que a diretoria se torne mais acomodatícia”, disse Rodrigo Azevedo, ex-diretor de política monetária do BC, em evento do Bradesco BBI na semana passada. “Criticar o BC, pode. O que não pode é fazer ações que dificultam e tornam mais custoso o processo de desinflação. Nos últimos três meses aprendemos claramente o que não fazer em um governo com BC independente.”

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Gestores e analistas ouvidos pelo Valor, que preferiram não se identificar, concordam que um debate aprofundado das metas pode ser pertinente. O próprio BC calcula que a probabilidade de o IPCA ficar acima do teto neste ano é de 83%, no relatório trimestral divulgado em março. O risco estimado era de 57% no documento anterior, de dezembro de 2022. Se confirmado, será o terceiro ano seguido de estouro. Mas os mesmos gestores e analistas afirmam que, ao impor o tema assim, “no grito”, o governo levou a uma desancoragem das expectativas de inflação, que agora podem demorar a voltar à estabilidade e atrasar o corte de juros.

O economista-chefe da Oriz Partners, Marco Bredda, explica que mais de 70% da formação da taxa usada na concessão de empréstimos depende dos juros futuros e que, mesmo que o BC reduzisse a Selic, agora eles continuariam altos, diante do temor de inflação. A gestora, inclusive, está no lado mais conservador do mercado e espera corte somente em 2024, segundo ele, por cautela em relação ao cenário fiscal.

“A apresentação do novo arcabouço fiscal foi um passo positivo, mas ainda tem muita ponta solta”, afirma. “O modelo garante aumento de gastos, mas não crescimento da receita, ou seja, é uma nova regra de gastos, não fiscal, e não sabemos como a receita vai se comportar.”

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O ceticismo em relação à nova âncora é amplo no mercado, que acredita que foi um passo importante, mas que ainda há muitos outros. Segue, portanto, a toada do presidente do BC, Roberto Campos Neto, que na semana passada elogiou a proposta por eliminar o risco de uma dívida com trajetória “explosiva”, mas frisou que ela não garante a queda dos juros.

“A reação foi moderadamente positiva porque a proposta foi melhor do que a esperada”, comenta Goldenstein, que no entanto está otimista: a Warren projeta para agosto o primeiro corte da Selic, que encerraria 2023 a 11,5% e 2024 a 9,5%.

Mas por que o setor financeiro demonstra tanta surpresa com as falas de um presidente em seu terceiro mandato, ou seja, na prática, um velho conhecido? Dois gestores com grande experiência no mercado, sócios em assets do Rio, são unânimes: o “Lula 3” não se parece com o “Lula 1 e 2”.

José Álvaro Moisés, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e autor de vários livros, concorda e vê uma parcela de ressentimento influenciando o presidente.

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“Lula é um grande líder, consolidado em uma parte substancial da sociedade, mas a série de reveses recentes muito fortes que sofreu afeta o modo como ele encara esse terceiro mandato”, explica.

O cientista político destaca que, se por um lado o presidente demonstra preocupação com fatores importantes para o país, como a redução da pobreza, a retomada da economia e a proteção da democracia depois das invasões de 8 de janeiro em Brasília, por outro acaba falando coisas que têm efeito negativo.

“Não há como dizer que ele não está fazendo um trabalho sério. Mas a forma com que tem se expressado acaba criando distanciamento, rejeição e hostilidade”, diz. “Não há quem o oriente como houve no passado, e ele precisa tomar mais cuidado para conquistar os que apoiaram Jair Bolsonaro.”

Carlos Melo, também cientista político e professor do Insper, lembra que, desde a redemocratização, nenhum presidente tomou posse sob risco de golpe, como foi com Lula. E que, diante do desmonte de políticas públicas, o governo assumiu sendo obrigado a fazer uma espécie de rearrumação geral. Mas ele também observa que a nova gestão ainda não mostrou sua face de futuro.

“O arcabouço fiscal não é projeto. Qual é o projeto de desenvolvimento do governo? Como vai lidar, por exemplo, com a revolução tecnológica mundial, que está transformando a produtividade, os empregos?”, questiona.

Melo critica ainda a comunicação descoordenada do governo, em que o presidente fala demais e acaba decepcionando eleitores que tinham expectativas diferentes. “Lula mudou muito em relação ao primeiro e ao segundo mandatos. Ele tinha antes um núcleo duro que se posicionava e ajudava a direcionar o presidente. Todo poder precisa de conselheiro.”

Para ele, o PT parece demonstrar que até hoje “não assimilou o [Plano] Real e não entende que a inflação é um grande mal”.

“Só que, se o partido admite um pouco de inflação, os agentes já consideram que admite aquele pouco e mais um pouco. As falas de Lula acabam anulando os bons sinais dados por Haddad.”

Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP, que integrou o governo de transição e agora faz parte da Comissão de Estudos Estratégicos do BNDES , tem outra interpretação. O economista afirma que o mercado se prende às suas próprias convenções, criando uma espécie de senso comum, e que o BC compõe essa narrativa. “Quem se reúne com a autoridade monetária é o mercado, não o meio acadêmico, e quando o BC se posiciona influencia, sim, a trajetória dos juros futuros.”

Para ele, a marca do presidente Lula é a negociação. “Ele parte do confronto, mas chega ao consenso.”

Fonte:https://inteligenciafinanceira.com.br/saiba/mercados/tensao-com-mercado-marca-100-dias-de-governo-lula/